Um trabalho de amor e técnica

Um trabalho de amor e técnica. Texto de João Candido Portinari, Diretor do Projeto Portinari, publicado no Catálogo Raisonné, em 2004.

O Projeto Portinari tem hoje o orgulho de apresentar um dos principais resultados de seus 25 anos de trabalho. Depois de publicar, no ano passado, a cronobiografia ilustrada do pintor, trazemos finalmente a público o seu Catálogo Raisonné. Esta obra é o coroamento de um esforço continuado de todo um time de pesquisadores, sediados na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio.

Dois anos antes de iniciarmos o nosso trabalho, Antonio Callado, biógrafo de Portinari, escreveu:

“…Segregado em coleções particulares, em salas de bancos, Candinho [Portinari] se vai tornando invisível…Vai continuar desmembrado nosso maior pintor, como o Tiradentes que pintou?”

Logo após sua visita à sede do Projeto Portinari, que dava então seus primeiros passos, Callado registrou [Isto É, 14.04.1982]:

“…Na casa do arquiteto francês Grandjean de Montigny, há um trabalho de amor e técnica que fixa para a posteridade a obra de Portinari…”

Quando começamos o nosso trabalho, em 2 de abril de 1979, dezessete anos após a morte do pintor, sua obra não possuía nenhuma catalogação, o paradeiro da maioria das obras era desconhecido, os livros sobre sua obra e vida estavam esgotados, nunca havia sido realizada uma exposição retrospectiva baseada no conhecimento da totalidade de seu legado artístico. As fontes primárias sobre sua obra e vida encontravam-se dispersas e de difícil acesso. Naquela ocasião, tive a tristeza de constatar pessoalmente, em visita que fiz ao Museum of Modern Art – MoMA, em Nova York, que eles possuiam mais informações sobre Portinari do que todas as instituições brasileiras que eu havia visitado. Ficava evidente que a memória de Portinari ia se perdendo diariamente, e até mesmo o testemunho vivo de seus contemporâneos ia se apagando, a exemplo de seus companheiros de infância, que o Projeto Portinari ainda teve a sorte de encontrar com vida, em 1982, e cujos depoimentos vieram iluminar o mistério de como, num povoado perdido no meio dos imensos cafezais da terra roxa do interior de São Paulo, pôde surgir um filho de imigrantes pobres que viria a se tornar o mais famoso pintor brasileiro de todos os tempos.

Nosso percurso está narrado mais adiante por Christina Penna, diretora técnica do Projeto Portinari, na pessoa de quem agradeço a todos os meus valorosos companheiros de trabalho, que fizeram desta empreitada um ato de amor, paciente e obstinado. Em verdade, as instituições e indivíduos a agradecer são tantos e tão importantes que prefiro representá-los por duas pessoas que foram absolutamente fundamentais para a viabilização e o êxito de nosso trabalho: José Pelúcio Ferreira, à época presidente da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP, e Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo. Quando olhamos para trás, temos a sensação de um milagre. O Projeto Portinari recebeu uma emocionante e maciça solidariedade da sociedade brasileira como um todo, além do apoio de inúmeras e importantes instituições, e de um grande e entusiasmado grupo de amigos, de profissionais das mais diversas áreas, de contemporâneos do pintor, de autoridades, e até de desconhecidos, no Brasil e no exterior, que saíram de seus cuidados para nos ajudar a localizar, documentar, pesquisar e catalogar a produção portinariana, encontrada em todo o território brasileiro, e em mais de 20 países das três américas, da europa e do oriente médio, assim como os documentos sobre sua obra, vida e época.

Não é por acaso que, se nos ativermos à “definição e aos requisitos que caracterizam uma publicação desta natureza”, este é o primeiro catálogo raisonné – não restrito a um período ou a uma técnica – de um artista latino-americano. Com efeito, produzir um catálogo raisonné é uma empreitada de longo fôlego, que pode exigir algumas décadas de trabalho obstinado e minucioso. Não é raro que toda a equipe envolvida em sua preparação venha a desaparecer, sendo o projeto retomado anos depois por outra equipe. Este gênero de publicação vinga melhor em terrenos estáveis, fora dos países onde as instituições carecem de continuidade, no vai e vem das mudanças políticas e da economia, o que explica serem “coisa de primeiro mundo”. Mesmo nos países mais desenvolvidos, são flor rara de se encontrar. Se consultarmos o célebre Benezit, em seus atuais 14 volumes, verificaremos que ali estão listados 170 mil artistas consagrados de todos os tempos e de todas as nacionalidades. Entre estes, menos de mil foram objeto de um catálogo raisonné, o que significa portanto que, de cada 170 artistas reconhecidos internacionalmente, apenas um foi assim contemplado.

O catálogo raisonné é assim um marco na história de uma nação. Quando um país publica um catálogo raisonné de um seu artista, ele ascende a um novo patamar civilizatório.

Quanto ao nosso Catálogo Raisonné, creio que ele não carece de maiores apresentações. Sua própria existência já diz muito mais do que eu poderia dizer nestas breves palavras. Da mesma forma que Portinari nunca precisou apresentar uma obra sua com palavras, deixemos que seu Catálogo Raisonné fale por si (e por nós…).

Espero que este Catálogo Raisonné de Portinari venha também desempenhar um papel importante na revelação de uma imagem em verdadeira grandeza do Brasil perante as demais nações, e também perante nós mesmos.

“…O menino Candido Portinari saiu de minha terra com papel e côres em punho para a imensa aventura de pintar uma pátria. Pintá-la, não: criá-la de uma realidade ignorada, mostrá-la aos quatro cantos do mundo, contorcida, ofegante, opressa, inaugural, como a dizer-lhe: ‘— Somos assim’…”

“…Um dia, seremos apenas os farrapos de narrativa de nossa existência. E mãos ávidas, mãos sábias do futuro virão recompor o que fomos, virão surpreender-se de nós. E do pó que seremos, retirarão o que beberam aqueles olhos e o que se escapou por aqueles dedos. E saberão que neste lugar existimos, porque ele inventou a nossa eternidade…” [Guilherme Figueiredo] Agradeço à Petrobras, por ter permitido que “o que beberam aqueles olhos e o que se escapou por aqueles dedos” fique a partir de agora registrado para sempre, e disponível à consulta dos jovens artistas, dos estudantes, estudiosos e pesquisadores dos quatro cantos do mundo.

“…Candido Portinari nos engrandeceu com sua obra de pintor. Foi um dos homens mais importantes do nosso tempo, pois de suas mãos nasceram a cor e a poesia, o drama e a esperança de nossa gente. Com seus pincéis, ele tocou fundo em nossa realidade. A terra e o povo brasileiros — camponeses, retirantes, crianças, santos e artistas de circo, os animais e a paisagem — são a matéria com que trabalhou e construiu sua obra imorredoura…” [Jorge Amado]

 
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