Explore o pensamento ímpar de Candido Portinari sobre o sentido social da arte nesse texto exclusivo.
O texto foi um discurso-palestra apresentado na Conferência de Candido Portinari lida para estudantes argentinos em Buenos Aires e repetida no Uruguai. Foi publicado no periódico argentino Cuardenillos de Cultura e na revista brasileira A Época, n.184 em novembro de 1947.
O Sentido social da arte
De Candido Portinari
'Queridos amigos,
Antes de mais nada, desejo pedir desculpas e explicar por que falo em minha língua. Em primeiro lugar, porque se eu quisesse falar no seu idioma, vocês seriam os primeiros a pedir que falasse no meu, pois assim entenderiam alguma coisa, ao passo que, se falasse na língua de vocês, nada entenderiam. Nossos idiomas são irmãos como o são nossos países e, por isso, quando vocês vêm ao meu país, preferimos que falem na sua língua, pois acredito que a Argentina e o Brasil prolongam-se em um só país. Nós, os brasileiros, sentimo-nos em casa aqui na Argentina e desejamos que o mesmo aconteça com vocês no Brasil.
Solicitado por um grupo de jovens a fazer uma palestra aqui neste local, não me foi possível negar. Na realidade, era o que devia ter feito, pois os pintores não nasceram para falar, e sim para pintar; esse é seu meio de expressão, e não a palavra. Por isso, vem-me à lembrança o que disse Poussin, o grande pintor francês, quando escrevia a um amigo: "Levo mais de quarenta anos professando uma arte muda e quando devo falar sinto-me extremamente desajeitado." E isso é o que me acontece agora. Aqueles que achem longa esta conferência poderão dormir ou retirar-se, sem pedir permissão ou desculpas. Para os que a achem curta, estarei à disposição para continuar o tema em outra ocasião.
Arte social é o tema que foi escolhido para esta palestra, mas como não sou especialista, pouca prática tenho para desenvolvê-lo. Entretanto, vou fazer o possível para chegar até o fim sem desviar-me muito do que vamos tratar. É um tema sobre o qual se tem escrito e falado muito e continuará sendo um tema de debate infinito.
Desejo esclarecer alguns pontos para explicar-me melhor durante a conferência. Um deles é o da qualidade intrínseca da pintura, cujo valor ninguém pode negar. Antes de qualquer coisa, analisaremos o espírito e a técnica da obra de arte, sem com isso querer separar essas duas coisas impossíveis de separar, pois são siamesas; uma não pode existir sem a outra, mas podemos fazer uma análise de ambas separadamente. O conteúdo espiritual de um quadro registra a potência de sensibilidade do artista. O lado técnico registra o conhecimento e o desenvolvimento da sensibilidade do artista. A técnica é o meio com o qual o artista transmite sua sensibilidade.
Para facilitar minha expressão, vou usar uma maneira um tanto arbitrária para expor meu pensamento. Vou desdobrar a sensibilidade em duas categorias: uma que denominarei sensibilidade artística, e a outra, sensibilidade coletiva. A sensibilidade artística só é sentida – em geral – por aqueles que nascem e educam-se com ela. Educa-se com museus, conferências etc. É por isso que os que se interessam pela pintura esforçam-se e exigem atenção do governo a essa área, e é justo que assim aconteça. Agora mesmo estou aqui porque um grupo de jovens acredita que este meio, a conferência, é útil nesse sentido. Há poucos dias, vendo os murais de alguns dos melhores pintores argentinos, constatei que esse trabalho é a melhor prova para que o governo lhes confie os muros de seus edifícios. Cumprindo, dessa forma, também uma finalidade educativa.
Continuando com este modo arbitrário para me expressar melhor, acredito que é possível verificar, ou melhor, medir a sensibilidade artística. Por exemplo, usando duas cores: vermelho e verde. Todos nós sabemos que uma cor vai numa gradação de um a milhões. Começaremos a mostrar essas duas cores em seu estado normal; depois, iremos transformando-as, adicionando outros matizes. Até o ponto em que o observador constate essas cores e sua sensibilidade seja registrada. Uma pessoa que nasceu com sensibilidade experimenta uma determinada emoção perante uma pintura, mas isso se refere a seres privilegiados. Daí a dificuldade do público em relação a certas obras de arte. Nestes últimos anos, como reação a obras puramente circunstanciais, surgiram grupos de pintores que fizeram e fazem uma pintura que se pode denominar arte pela arte. Foi e é um acontecimento normal dentro da história. Como todos sabem, uma escola de pintura surge quase sempre como reação a outra. Todos os homens estão formados quimicamente por porcentagens diferentes em relação às coisas do mundo; por isso mesmo, dizemos que existem pessoas que nascem com sensibilidade para fazer ou sentir uma pintura. Isso não quer dizer que as outras pessoas não possuam nenhuma sensibilidade, e sim que nasceram com uma porcentagem mínima de sensibilidade para a pintura. E é incorporando elementos acessíveis que a pintura interessará a um maior número de pessoas.
Há outra consideração necessária a ser agregada. Nem a pintura circunstancial nem a pintura pela pintura bastam para se dirigir às massas. Talvez com a fusão das duas se possa alcançar esse fim.
Há pintores que afirmam que só pelo fato de pintar um cubo e uma esfera estão fazendo arte avançada. Pensar assim é um tanto elementar. Esse cubo e essa esfera pintados por um pintor de conhecimentos técnicos e sensibilidade converter-se-ão em uma obra artística, como o seria se ele fizesse um nu. Esses dois motivos, pintados por um pintor sem técnica e sem sensibilidade, resultariam num quadro desprovido de qualquer valor artístico. Portanto, acredito que para fazer uma obra de arte o tema tem pouca importância.
Claro que tudo isso é elástico, mas até certo ponto; e não se deve ver mais tragédia em um quadro do Kandinsky, por exemplo, do que num fuzilamento de Goya. Assim como não há homens de cinco metros, tampouco os há de dois centímetros de estatura. Raciocinando em função dos contrários, cairemos no caos.
Seria melhor que o homem que pinta e possui sensibilidade coletiva, mas carece de sensibilidade artística, fosse diretamente à praça pública e dissesse em uma linguagem corrente o que sente, em vez de expressar-se por meios plásticos. Como já dissemos, a pintura social é a que pretende dirigir-se às massas, e os pintores dessa categoria devem possuir sensibilidade artística e coletiva. Ambas devem ser educadas; para a primeira já dissemos quais são os meios que acreditamos sejam os mais adequados.
Penso que a segunda sensibilidade poderá ser desenvolvida ao entrar em contato com as massas, auscultando seus desejos. Todos possuem, em maior ou menor grau, tanto uma como outra sensibilidade; é claro que os que na vida demonstram vocação devem educar-se para poder atuar. Um pintor não é pintor social simplesmente porque tem vontade de sê-lo, e sim por razões de sensibilidade e educação (é um tanto irônico chamar de educação o viver e sofrer os desejos do povo, mas uso essa palavra para simplificar e para não me desviar do problema principal que estamos tratando). Bem sei que, para explorar como deveria este tema, seria necessário escrever vários livros, mas só desejo dizer mais ou menos o que penso sobre a arte social e estabelecer, ao mesmo tempo, que não pretendo estar aqui ensinando com “ares doutorais”. Esta é apenas uma conversa entre amigos.
O desenvolvimento e a direção de qualquer atividade humana estão relacionados aos acontecimentos históricos, políticos e econômicos. Uma consideração justa hoje pode não sê-lo amanhã. Vivemos em um mundo contraditório em que o artista, por possuir uma sensibilidade à flor de pele e em maior grau, sofre intensamente.
Dirige-se em várias direções e cada qual sofre e defende o seu mundo, mais por sentimento do que por raciocínio; é certo que só se raciocina impulsionado por um sentimento qualquer, mas em geral acontece que só ouvimos a voz do sentimento, em vez de ouvir o sentimento pela voz do raciocínio.
Se colocássemos um artista em uma sala onde só houvesse um objeto – um telefone, por exemplo –, depois de algum tempo descobrirá alguma beleza nesse telefone; essa beleza estará relacionada à sua sensibilidade artística e, embora ele possua sensibilidade coletiva, esta ficará desligada do seu meio e será consequentemente superada e vencida pela sensibilidade artística, e o artista gritará com a voz do sentimento em defesa daquela beleza.
A beleza é como um reino onde as lutas e as mortes acontecem. Cada vez que há luta e cada vez que há mortes lhes são atribuídas razões diversas. Na Europa, devido ao desenvolvimento da especulação da beleza, chegou-se ao máximo, esgotando-se todos os recursos no terreno da pintura. Por essa razão, cada vez mais foi se distanciando a pintura figurativa. Toda essa inquietação provém do regime social burguês, que já se encontra em decomposição. Por isso mesmo, o setor revolucionário e, portanto, mais avançado, busca no figurativo o seu meio de expressão. Mas, como ainda prepondera a burguesia decadente, existe a luta entre o abstrato e o figurativo. Essa discussão preocupa neste momento os meios artísticos da Europa e, sobretudo, os de Paris, que continua sendo o centro do mundo em matéria intelectual.
Entretanto, há muita confusão quando se trata do figurativo, pois há muitos que levam o figurativo a um campo de imitação, acreditando no retorno ao acadêmico. Na realidade, os figurativos não defendem uma volta ao passado, pois se assim o fizessem, não seriam revolucionários. O que desejam é superar o que já foi feito, incorporando todas as conquistas, e prosseguir. Em todo caso, o debate continua firme e cada grupo defende ferozmente seu ponto de vista. Essa luta sempre existiu, mas na realidade o que dá fim a esses debates são as mudanças de regime, ou melhor, estes são os que mudam real e concretamente. Mas, por outro lado, essas mudanças só ocorrem com a luta e há muitas formas de combate. Para expressar-me melhor: em cada momento da vida humana existe a luta, e quando a maioria desses setores coincide, a mudança ocorre. Isso quando se vê de forma ampla todo o panorama no qual debatem-se os homens. Visto de outra forma, cai no individualismo, o que significa sentir as coisas em relação a si mesmo de acordo com os pequenos problemas, o que leva à cegueira. Os regimes dominam todos os setores, inclusive o artístico.
É curioso, por exemplo, observar que na América Latina a questão da pintura social não só é mais debatida como há também um maior número de artistas empenhados em sua realização. A maioria desses países é semifeudal e semicolonial. Portanto, a diferença social é mais visível e, como a educação artística está menos desenvolvida, o artista tem a sensibilidade coletiva mais latente. A pintura mural é a mais adequada para a arte social, porque o muro geralmente pertence à coletividade e, ao mesmo tempo, conta uma história, interessando a um maior número de pessoas. Podem obter-se dois resultados por esse meio: a educação plástica e a educação coletiva.
É preciso não perder de vista a função da pintura em nossos dias, nos quais a arte incorporou a fotografia e o cinema. Ambos são insuperáveis para certos casos e, quando se tenta invadir o terreno de qualquer dos dois, é feita uma arte de categoria inferior. Não quero dizer com isso que o cinema e a fotografia sejam artes secundárias. Para mim, todas as artes têm a mesma possibilidade. Nenhuma é superior ou inferior. Mas cada uma tem seu campo de ação. Quem as exerce eleva-as mais ou menos; depende da capacidade do artista e não do gênero de arte. Mas, repito, cada uma tem seu campo de ação: quando invade outro campo, fatalmente se é derrotado. Claro que, se possuir qualidades, estas não desaparecem. É como se um grande corredor corresse em uma pista de três metros: seria verificável que é um grande corredor, mas não disporia de todos os meios para demonstrá-lo. Houve uma época em que um quadro funcionava mais como documento histórico do que como uma obra de arte, e o curioso é que a maioria desses quadros possui um valor artístico extraordinário; embora pareça uma contradição o que estou dizendo, se observarmos com atenção o que se pintou nesse sentido depois do surgimento da fotografia e do cinema, chegaremos à conclusão de que noventa por cento desses quadros estão despossuídos de valor, até mesmo histórico. Isso prova, mais uma vez, que a importância do tema é muito relativa. Nos tempos antigos, a visão artística dos homens talvez fosse mais pura e havia uma compreensão mais exata da função do quadro. Não havia a imposição da imitação. O artista representava uma figura ou uma paisagem sem cair no imitativo. Assim, podemos observar as decorações bizantinas, por exemplo, nas quais o artista representava uma figura com a cabeça pintada de verde e os pés de vermelho, e não acredito que seus contemporâneos se escandalizassem, tal como acontece hoje em casos semelhantes. Essas figuras não eram representadas apenas no sentido objetivo, mas também no sentido espiritual. Por isso, asseguro que por meio do tema podemos chegar ao interesse plástico, de como foi executado tal ou qual fragmento do quadro, chegando a abstrair o que representa. Mas, acima de tudo, é necessário interessar ao público. Agora, como em geral o público não tem educação plástica, em princípio só se interessará se o quadro lhe disser alguma coisa extra-artística, para, pouco a pouco, entrar no terreno plástico.
Além do aspecto coletivo, que para mim é o mais importante, acredito que por esse meio pode-se chegar à educação puramente estética, pois o observador vai diretamente ao quadro, sem necessidade de explicações. Pelo contrário, quando nos museus ou exposições deseja-se colocar à força na cabeça do público tais ou quais formas, com razões um tanto abstratas, não se chega a nenhum resultado, formando na maioria das vezes uma infinidade de esnobes com esse método. É necessário que o artista dê uma oportunidade para que o público venha ao seu quadro e não dê explicações verbais sobre esta ou aquela cor. Tudo o que se produz irá de acordo com a intenção que se tiver. Por exemplo: se eu fizer algo que se dirige ao povo, cedo ou tarde irá ao povo. Se o povo agora não está capacitado, estará amanhã. Se eu fizer uma coisa sem intenção, cairá no vazio.
Geralmente se diz que o mundo está cheio de boas intenções, mas é preciso saber que direção dar a essas boas intenções. De acordo com nossa capacidade de discernimento, encaminharemos nossas ações e obteremos o resultado desejado. Nesse sentido, existe uma só verdade, do contrário eu pagaria uma dívida de mil pesos com um peso, dizendo: minha intenção é que este peso valha mil.
Todas as coisas no mundo, até as mais abstratas, têm um peso e uma medida; o importante é encontrar o peso e as medidas adequadas. Se um artista que fizer uma obra de arte tiver intenção de dirigir-se às massas, ainda que o faça de maneira complicada, um dia será compreendido.
Não há dúvida de que se alguém nos quisesse dizer que um círculo que pintou em uma tela representa um menino chorando, esse artista corresponde a um mundo que quer falar de uma praça pública; o máximo que poderíamos dizer seria: tem boa intenção, mas é um incapaz ou, pior ainda, um mentiroso. Plasticamente, há liberdade para as expressões mais diversas. Quando alguém deseja representar um menino chorando, há mil maneiras de fazê-lo. Da mesma forma como quando se diz alguma coisa: essa coisa pode ser dita em voz grave ou aguda, alta ou baixa, não importa. O que importa é o que foi dito.
É um limite bastante elástico. Tudo tem um princípio e um fim, mas esse princípio e esse fim transformam-se imensamente dentro de uma lógica para não cair no caos, gerando um jogo perigoso. Como quando se diz que não vale a pena modificar a situação dos que estão morrendo de fome, esses que assim falam acrescentam: sentir-se-ão infelizes fora do seu ambiente. É o argumento dos que detestam qualquer mudança.
Acredito que ficou bem claro que um quadro deve possuir, acima de tudo, um valor intrínseco, isto é, um valor artístico. Muitos acharão absurdo pedir mais que isso a um quadro. Um artista debate-se por toda a sua vida com seus problemas artísticos e não é justo que se lhe peça mais, já que o tema só serve para desviá-lo do seu caminho. Bem sei que esse é o problema fundamental para um artista, mas quando se pinta, sempre se representa algo fora da questão plástica. Todos os pintores sabem que não é o tema o que conta. Por isso mesmo, não é demais pedir ao pintor que incorpore esse detalhe ao qual dedica tão pouca importância a seu quadro, já que é algo extra-plástico. Para o bem dos que lutam e sofrem na vida, em todos os seus matizes.
Estou seguro de que esse ato só pode beneficiar a obra de arte, porque a ela será somada alguma coisa útil. Os temas de Goya, por exemplo, são verdadeiros gritos, são de uma visibilidade incrível e, entretanto, o valor plástico permanece. Sem ser, em absoluto, plasticamente inferior em relação a tudo que de melhor tem sido feito na pintura abstrata.
Não vejo razão na necessidade de abstenção intransigente do tema. Principalmente hoje, que se pode aproveitar toda a experiência plástica, ficando o artista com uma liberdade absoluta, como um menino de quatro anos que tivesse um quadro de mil metros por mil para se divertir. Todo artista que meditar sobre os acontecimentos que perturbam o mundo chegará à conclusão de que fazendo seu quadro mais “legível”, sua arte, em vez de perder, ganhará. E ganhará muito, porque receberá o estímulo do povo.
Sei que os artistas que se fecham em si mesmos são aqueles que mais sofrem, mas, infelizmente, esse sofrimento não conduz a nada e não beneficia a ninguém.
Há quem acredite que somente com uma cor poderá expressar em um quadro uma tragédia ou uma alegria. Também acredito nisso, mas são emoções de pequeno alcance, que só alguns privilegiados poderão sentir. Ao passo que esse artista, que somente com uma cor foi capaz de produzir tal sentimento, poderia ampliar sua força e dirigir se às massas. São esses casos que nos obrigam a classificar a sensibilidade em duas categorias: artística e coletiva. Todos os artistas possuem altas doses de ambas. Por mil circunstâncias, em vários artistas uma delas supera e embota a outra.
Os pintores que desejam fazer arte social e são amantes da beleza da pintura em si mesma são aqueles que não esquecem que estão neste mundo cheio de injustiças para formar filas ao lado do povo, auscultando os desejos em que este se debate. O pintor social acredita ser o intérprete do povo, o mensageiro dos seus sentimentos. É aquele que deseja a paz, a justiça e a liberdade. É aquele que acredita que os homens podem participar dos prazeres do universo. Ouvir o canto dos pássaros. Ver as águas dos rios que correm fecundando a terra. Ver o céu estrelado e respirar o ar das manhãs sem chuvas. Sem nenhum outro pensamento a não ser o de fraternidade e paz. Homens vivendo em um clima de justiça. Onde não haja crianças famintas. Onde não haja homens sem direito. Onde não haja mães chorando e velhos morrendo ao relento.'