Israel Pedrosa, O Pintor do Novo Mundo

2023

O Pintor do Novo Mundo

Por Israel Pedrosa

'Sempre que se quis definir Portinari, a partir da visão de sua obra, essa definição atingia uma tal abrangência que ultrapassava em muito a caracterização, simplesmente humana, do pintor.

Foi assim quando de sua exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York, apresentando‐o como Portinari of Brazil, formulação que dava‐lhe o foro de pintor nacional de seu país.

No catálogo da exposição Cem Obras Primas de Portinari, realizada pelo MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), seu diretor Pietro Maria Bardi o qualificara como "um intérprete das misérias do Terceiro Mundo", tendo Antônio Bento, algum tempo depois denominando‐o simplesmente: "O pintor do terceiro Mundo".

Ao reduzir o termo, Bento ampliava‐lhe o sentido, como que dissesse ser ele não apenas o intérprete das misérias mas também das lutas, alegrias e esperanças comuns a esse universo majoritário de nosso planeta.

Hoje, passadas várias décadas desses esforços de definição, delineia‐se claramente o perfil de Portinari como o de o pintor do Novo Mundo. Epíteto que, ultrapassando o significado simplesmente geográfico, representa sobretudo o novo mundo social e espiritual que o perene labor humano vem construindo, como fruto de seus melhores anseios: a Nova Era de que Paul Klee e David Alfaro Siqueiros sonhavam ser os pioneiros. E que realmente o foram, cada um a seu modo.

Este Novo Mundo, de que Portinari viria a ser seu grande intérprete e magno representante, é o Novo Mundo que começa a emergir em meio às lutas e às aspirações, não apenas dos visionários das regiões periféricas e dos atuais países emergentes, mas também, às de toda a humanidade progressista. Mundo de paz, de trabalho produtivo, de alegria, felicidade e amor entre os seres humanos, e de fraterna confiança entre os povos.

Mundo que alheio às desalentadoras especulações cerebrinas sobre o fim da História, começa a palmilhar as sendas vislumbradas de superiores estágios sociais da irrefreável História, nutridas pela incansável busca da perfectibilidade da condição humana.

O Realismo do século XX

Se aplicarmos à obra de Portinari, o conceito de John Ruskin, de que para a análise da obra de arte a primeira pergunta a se fazer é: – o que ela nos ensina? A resposta será o espanto. Veremos que melhor que nos compêndios de história, de economia, de sociologia ou de política, o relato visual de Portinari expressa os mais avançados conceitos da cultura de seu tempo, que aponta sempre para um horizonte promissor.

Tomada em seu conjunto, como um imenso painel que aborda todos os aspectos da alma humana e da vida social, da miséria e desgraça, aos anseios da bem‐aventurança terrestre. O brilho do olhar de seus miseráveis e degradados seres amoráveis tem a chama reivindicativa da esperança. Sua obra, expressão coerente de sua generosa visão de mundo, não decorre apenas de um “otimismo da vontade” em meio ao “pessimismo da razão”. É expressão de uma razão combatente que em meio à adversidade, revela os lenitivos de uma cantata ao porvir.

Então, tal como Shakespeare, Bach, Mozart ou Goethe, em puro aporte ao conceito gramisciano, sua arte "ensina enquanto arte, não como arte educativa", adentrando o reino do conhecimento sensível, tal como vislumbrara Vico.

Sem desfalecimento a obra de Portinari assume autêntica expressão do Realismo do século XX. Realismo herdeiro do mesmo clima espiritual de Goya, Turner, Daumier, Millet e Courbet.

Nutrida por hermenêutica de toda a História da arte, a saga portinariana revela ressonâncias sensíveis dos pré‐renascentistas, dos renascentistas, dos tormentos de Grunewald, dos arroubos expressionistas e até de insólitos ângulos cubistas. Seu Realismo, expressão sublimada do modernismo estético do século XX, reveste‐se com toda a riqueza ancestral do vocabulário plástico universal.

Contudo, não é um "Realismo sem fronteiras", como aspirava Roger Garaudy, pois nele, como assinala o próprio Portinari, em seu poema "Grunewald", há um inequívoco norteamento humanístico:

"O bem é teu, permanecerá.
Malditos eles donos do mal
Não existirão."

A universalidade de seu vocabulário plástico é ao mesmo tempo a única forma de expressão de seu postulado estético.

É com ela que desde o início de sua saga ele revela um universo novo para a historicidade da arte. Daí surgem as reminiscências rurais de sua infância, o cenário humilde das nascentes metrópoles, cenas e alma da vida brasileira.

A singeleza ou a monumentalidade dessas visões estão expressas nos murais da casa de Brodowski, da capela da Pampulha, do Ministério da Educação, da Biblioteca do Congresso, em Washington, e dos painéis e quadros que percorreram o território das três Américas.

Em período sombrio para a humanidade, a exposição de elementos dessa imensa obra fez parte da “política de boa vizinhança” entre os Estados Unidos da América do Norte e os povos da América latina, na mobilização continental contra o Nazifacismo. Período que antecedeu à entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado das potências aliadas.

A Exposição da Galeria Charpentier

No imediato pós‐guerra, quando Paris preparava‐se para reassumir sua condição de capital mundial da pintura, no outono de 1946 é montada na Galeria Charpentier a grande exposição de Candido Portinari, idealizada pelo historiador de arte e conservador do Museu do Louvre, Germain Bazin, que escreveu o prefácio do catálogo da mostra.

Nele o crítico francês afirma que sozinho e no outro lado do mundo, o pintor de Brodowski tomara espontaneamente essa posição social, cuja inquietude começava então a surgir na França. Acrescentando que confrontavam‐se em sua obra todas as forças de expressão. Agia como se tivesse de inventar por conta própria a pintura, abordando todas as técnicas e todas as harmonias. Ao lado de telas cheias de ternura havia outras de um expressionismo pungente, cuja violência sem medida talvez causasse surpresa aos parisienses, habituados a verem respeitados, mesmo nas maiores audácias os cânones elaborados por trinta anos de especulações plásticas obedientes ao bom‐tom.

Essa violência soprava como um vento impetuoso, vindo de seu próprio país. Terra dominadora dos trópicos, cuja força, no espaço de uma geração, assinalava os homens provenientes de todos os quadrantes do mundo, conseguindo assim modelar uma unidade nacional surpreendente: o Brasil.

Segundo o crítico Antônio Bento que, assistira essa exposição de Portinari em Paris, ao lado de inúmeros outros jornalistas e intelectuais brasileiros, em seu livro "Portinari" (p. 195), Jean Cassou, então diretor do Museu de Arte Moderna de Paris, em texto introdutório ao catálogo afirmava: "as telas do brasileiro eram uma narrativa e um canto. Descreviam e cantavam uma América jovem, uma tragédia nova. Referiu‐se a seu colorido livre, sua ampla composição, seu desenho lancinante... semelhante a uma canção até então não ouvida."

Segundo o crítico brasileiro, à véspera da inauguração, Paris apareceu coberta de cartazes anunciando a exposição de Portinari na Galeria Charpentier. O êxito da mostra foi registrado em inúmeros noticiários diversos e em mais de cinquenta artigos de crítica, e assistido por numeroso público: "comparecimento em massa, verdadeira multidão".

Através da cadeia nacional da rádio difusão francesa, o poeta Louis Aragon, um dos criadores do surrealismo, ressaltou a expressão profunda, exata, humana e surpreendente de um artista estrangeiro como Portinari, que em cuja obra se sentia representada sua nação…

No mesmo período da mostra de Portinari, realizaram‐se em Paris o Salão de Outono e a exposição de Kandinsky, dando início ao revigoramento da abstração pictórica.

A origem desse revigoramento encontrava‐se do outro lado do Atlântico, no êxito da distante exposição de 1913, no Armory Show, de Nova York. Evento catalizador de público e prestígio para as vanguardas artísticas e para todo o movimento modernista europeu, criando em meio aos artistas, à intelectualidade e à alta burguesia norte‐americana o decisivo apoio para o triunfo e expansão planetária dessas correntes artísticas que caracterizaram a cultura e as artes do último século.

No curso da segunda metade desse citado século, verifica‐se a morte das denominadas vanguardas artísticas, dando início ao ciclo de culto aos grandes artistas revelados por elas.

O fim das denominadas vanguardas artísticas está ligado ao declínio do poder dos pólos estéticos hegemônicos das grandes potências ocidentais.

Em decorrência do vigoroso surto de renovação cultural que vinha se desenvolvendo desde o século XIX e início do século XX nas antigas regiões periféricas, caracterizadas agora como universo emergente, juntando‐se ao que de melhor produziram alguns artistas dos países desenvolvidos, surge no decorrer do século passado excepcionais exemplares de uma arte que abre caminho a novos estágios de fruição estética, apontando para um almejado e inigualável mundo novo. Falamos de uma cosmovisão alicerçada pelas sonoridades díspares de Aran Katchaturian, Samuel Barber e Heitor Villa‐Lobos; pela dramaturgia de Bertold Brecht; pelas espantosas visões literárias de Mikhail Cholokhov, de Theodore Dreiser, Guimarães Rosa e Gabriel García Márquez; pela poesia de Nazim Hikmet, Paul Valéry, Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade; pelos relampejares sísmicos de Serguei Eisenstein, Akira Kurosawa, Frederico Fellini e Glauber Rocha, pela imagística de Paul Klee, David Alfaro Siqueiros e Candido Portinari.

Os painéis Guerra e Paz

Para Portinari, os últimos anos da década de 1940 e os primeiros da seguinte, são marcados pela realização de seus grandes painéis móveis: Primeira Missa no Brasil (1948), Tiradentes (1949), Chegada de D. João VI ao Brasil (1952) e Guerra e Paz (1952‐1956).

Em 1952, atendendo convite do Itamaraty, Portinari inicia a realização das maquetes dos dois imensos painéis (14 x 10m cada) para a decoração do edifício sede da ONU, em Nova York. Edifício projetado por Le Corbusier, e em cuja elaboração trabalhara Oscar Niemeyer. Os temas escolhidos para os painéis foram a Guerra e a Paz. Síntese das preocupações e objetivos primordiais dos trabalhos das Nações Unidas.

Decorridos quatro anos de árduo trabalho, no dia 5 de janeiro de 1956, os imensos painéis foram entregues ao Ministério das Relações Exteriores.

Durante o período de sua realização, a imprensa do país e do exterior acompanhou com interesse o trabalho do artista. Ao ser anunciado o seu término, desencadeou‐se imenso movimento de opinião pública liderado por eminentes intelectuais, artistas e organizações culturais e até por sindicatos operários desejando a exposição dos painéis no Brasil, antes de seu envio para Nova York.

Atendendo a este clamor geral, o Itamaraty organizou a mostra dos painéis Guerra e Paz, no Teatro Municipal do Rio e Janeiro, transformando‐o no mais amplo salão de exposição visto no Brasil até então, e no templo reverencial de um momento específico de nossa contribuição à historicidade artística da humanidade.

No dia 27 de fevereiro de 1956, na presença do Presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, e altas autoridades, de representantes políticos de todas as tendências, de intelectuais, artistas e de eufórica multidão em clima de júbilo nacional, foi inaugurada a extraordinária mostra.

Pouco mais de um ano depois, ante o secretário‐geral das Nações Unidas Dag Hammarskjold, e representantes do Brasil, embaixador Cyro de Freitas‐Valle e do ministro Jayme de Barros, em setembro de 1957 foram inaugurados no edifício sede da ONU, em Nova York, os painéis  Guerra e Paz, de Candido Portinari.

Considerações Gerais

Em 2007, marcando o cinquentenário da inauguração dos painéis, o Projeto Portinari publicou o livro comemorativo da efeméride: Guerra e Paz – Portinari. Nele, eu afirmara que os dois painéis constituíam "um discurso visual uno em sua complexa complementaridade sobre os extremos da desgraça e da bem‐ aventurança, na trágica e comovedora visão pintada por Portinari".

Nas páginas da história da arte, em que surgem incontáveis guerras datadas e localizadas, como as de Tróia, e do Peloponeso pintadas por Eufrônio, as Batalhas de San Romano e Anghiari, de Paolo Uccello e de Da Vinci, ou Guernica, de Picasso, todas são narradas por cenas que as identificam, localizam e datam. Com os recursos próprios ligados ao tempo da pintura, cada uma delas participando da variada gama de conceitos que vai do heroísmo à dor e ao desespero ou defendendo um solo, uma idéia ou uma causa que as particularizam. A abordagem de Portinari é outra. Não identifica guerra alguma, como se afirmasse que em essência todas se equivalem no desencadeamento de horror e animalidade. Nenhuma arma identificável, em Portinari; a cavalgada apocalíptica que corta a cena em todas as direções com seu cortejo de conquista, guerra, fome e morte, não traz as cores bíblicas do fogo e do sangue, nem o preto, o branco ou o amarelo. É o azul que domina. Uma trágica e dorida sinfonia em azul, passando por toda sua escala. Os tons escuros, soturnos, ricos em variadas e profundas nuanças violáceas, desenham as cenas sobre fundo de claros azuis de reflexos verdátreos, tendentes aos leves citrinos.

Contrastando com esse universo azulado, valorizando‐o cromaticamente, em contraponto tonal, o cavalo manchetado de carmim, a carnação de rostos, braços e pés saindo das vestes escuras, surgem em vibrantes alaranjados que vão das sombras trevosas violáceas, aos quase vermelhos e rosas de intensa crepitação luminosa. Nesse clima de violentos contrastes, de soturna féerie, o tropel ininterrupto liberta as feras que aterrorizam o mundo.

Estamos diante de um cataclismo aterrador em que os tempos remotos confundem‐se com a origem dos tempos. Se o terror nos traz à memória reminiscências de anátemas de Luca Signorelli e de Dürer, a concepção, inventiva e fatura nos trazem de volta à realidade de uma modernidade intemporal.

Realçado por clara luz, um eremita desnudo, de pé em penitência, cobre os olhos com as mãos, em prece e lamento. Figuras em grupo compacto, genuflexo, braços levantados com as mãos espalmadas e rostos voltados para o céu, nesse cenário de morte deixam transparecer uma aragem de força e vida, de condenação à própria existência da guerra.

No painel Paz, tal como acontece em seu par: "são múltiplas as reminiscências de obras anteriores de Portinari, como também são vários os vestígios desses trabalhos em quadros posteriores do Mestre. O que significa dizer serem eles elos coerentes de uma imensa produção pictórica da mais alta representatividade do poder criador do século XX (...) O que emana desse painel, nos enleva e encanta, mais que a idéia de paz e da paz, é a própria paz que nos invade ao contemplá‐lo. É a sensação de penetrarmos num universo sereno, de comunhão fraterna no trabalho produtivo, num reino mágico de cores reluzentes, do som da ciranda de jovens num canto universal de fraternidade e confiança, ou da candura dos folguedos infantis. Com todos esses tons dourados, alegres, crepitantes de vida, o pintor parece nos dizer: A paz universal é possível. Dia virá em que a humanidade desfrutará a paz sem limites no espaço e no tempo."

O livro Guerra e Paz – Portinari foi publicado em dois volumes, com idêntica programação gráfica, em português e inglês. War and Peace – Portinari foi oferecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao secretário‐Geral da Organização das Nações Unidas, Sr. Ban‐Ki‐ Moon, momentos antes do pronunciamento do Presidente da República do Brasil, abrindo a 62ª Assembléia‐Geral da ONU.

Segundo o relato do matemático João Candido Portinari, filho único do pintor, fundador e diretor do Projeto Portinari, integrante da comitiva presidencial à referida Assembléia‐Geral das Nações Unidas, o presidente Lula encerrou seu discurso dizendo:

"Senhoras e Senhores,

Ao entrar neste prédio, os delegados podem ver uma obra de arte presenteada pelo Brasil às Nações Unidas há 50 anos. Trata‐se dos murais Guerra e Paz, pintados pelo grande artista brasileiro, Candido Portinari.

O sofrimento expresso no mural que retrata a guerra e nos remete à alta responsabilidade das Nações Unidas de afastar o risco de conflitos armados.

O segundo mural revela que a paz vai muito além da ausência da guerra. Pressupõe bem‐estar, saúde e um convívio harmonioso com a natureza. Pressupõe justiça social, liberdade e superação dos flagelos da fome e da pobreza.

Não é por acaso que o mural Guerra está colocado de frente para quem chega, e o mural Paz, para quem sai. A mensagem do artista é singela, mas poderosa: transformar aflições em esperança, guerra em paz, é a essência da missão das Nações Unidas.

O Brasil continuará a trabalhar para que esta expectativa tão elevada se torne definitivamente realidade.

Muito obrigado."

São estes monumentais painéis – umbral dos novos tempos, e do atual Templo da democracia universal que almejamos – que o Projeto Portinari vem envidando esforços para mostrar ao público francês, marcando o retorno da presença artística de Portinari a Paris, 64 anos após sua memorial exposição na Galeria Charpentier, em 1946.'

Intervenção no Colóquio Internacional Portinari em Paris: 1946­-2009, PUC-­Rio, novembro de 2009.

 
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